sexta-feira, 19 de abril de 2019

Fusão Étnica Contemporânea



Este texto é uma reflexão fruto de experimentações pessoais e observações do processo evolutivo das criações em fusão no Brasil e no exterior. O desdobramento de um estilo em outro através de elementos criativos que são transmitidos de uma dançarina a outra em intercâmbio em uma mesma comunidade através de aulas, workshops, festivais e vídeos.
Apresento sugestões de nome para estilos derivado de outros estilos de dança.

Quando, graças à investigação criativa dos coreógrafos, um estilo de dança toma caminhos que o leva a romper as suas próprias fronteiras criativas, ele talvez precise de novos títulos e subtítulos que traduzam estas diferenças em relação à sua modalidade matriz.

FatChance BellyDance 

O Estilo Tribal Americano (ATS®), desde o seu surgimento, já inspirou milhares de novas dançarinas a criarem novos caminhos para explorar suas influências. Não demorou muito para que surgisse o ITS, o Tribal Fusion e a partir destes, outras possibilidades de fusão, Fusion Belly Dance, o Tribal Urbano, Neo Tribal, Dark Fusion, Fusão Tribal Brasileira, entre muitas outras fusões étnicas e temáticas.

A Fusão Étnica Contemporânea surge das fusões abordadas na formação do estilo tribal, mas propõe um olhar contemporâneo diferenciado, rompendo fronteiras criativas e se baseando em influências externas de outros estilos de danças cênicas.

Tribal

Tribo Berbere

O dicionário da língua portuguesa apresenta alguns significados diferentes para o vocábulo “Tribo”. Antropologicamente: “Grupo de pessoas que descendem do mesmo povo, partilham a mesma língua, têm os mesmos costumes, tradições etc.” Biologicamente: “Classificação sistemática e menor que a subfamília.” Historicamente: Divisão de um mesmo povo, como as doze tribos de Israel ou as tribos romanas, ou no sentido figurado: “Grupo de pessoas que partilha interesses, gostos, relações de amizade.”

Existem muitas definições para tribo e por consequência para o que será considerado tribal. Em comum à todas as definições é o sentido de coletividade, de afinidade entre participantes de uma mesma tribo. As manifestações artísticas de uma tribo serão fruto de hábitos e costumes semelhantes.
Loko Kamel Tribal Dance

Sabemos que o vocabulário de movimentos do American Tribal Style® tem raízes em movimentos de tribos ciganas, beduínas e berberes do norte da África, além do flamenco e de danças clássicas indianas, e que busca referências estéticas tribais para composição de figurino e inspiração musical. Apesar disso, o que realmente me leva a entender o estilo como um “estilo tribal de dança” é a natureza da improvisação coordenada que envolve as participantes de um mesmo grupo em uma mesma conexão mental e emocional. Também o fato de ser um estilo pensado para grupo e o fato deste grupo precisar conviver e treinar junto para desenvolver uma conexão cada vez maior entre si. Quanto maior a conexão, mais sincronizado e bonito é o resultado do ato de improvisar junto. O estilo tribal americano possibilitaria então, a formação de tribos no sentido figurado, com influências estéticas de tribos no sentido antropológico.

Danças populares e danças cênicas

Folia de reis - dança popular


Dança popular é aquela originária dos costumes de um povo. Fruto da história deste povo, das miscigenações, das características geográficas de onde provém a sua origem, de sua música, de sua comida, do clima de sua região. A dança popular será em família, com amigos, em ambiente descontraído, uma festa, um evento popular, não exige refinamento técnico de quem dança, é desenvolvida de forma espontânea e natural. Algumas danças são ligadas a rituais religiosos e são praticadas há tanto tempo que ganham status de danças folclóricas. Não vamos nos estender na conceituação de folclore, porém. Existem incontáveis danças populares ao redor do mundo em todos os povos, em todos os continentes. Danças populares que são expressões étnicas de seus povos, sua corporeidade, sua musicalidade, sua maneira de se vestir.

Equilíbrio Cia de dança
Dança cênica é aquela criada na idade média para entretenimento e expressão artística da classe nobre. As danças palacianas, desde as cortes europeias às andaluzas, danças criadas para apreciação de um público, para o desenvolvimento do virtuosismo, da técnica refinada. É a origem do balé e de diversos outros estilos que surgiram de seu desdobramento, negação ou evolução: A dança moderna, a dança contemporânea, o jazz, entre outras.




Existem muitos casos de danças populares que evoluíram para danças cênicas. Os profissionais de dança mais antigos foram os ciganos em diversas partes do mundo, por seu costume secular de usar suas danças populares para entretenimento e forma de ganhar dinheiro. O fato de expor a dança à apreciação de um público é já em si transformador da maneira como esta dança será apresentada, existindo uma preocupação com a delimitação de um espaço cênico, com a ocupação deste espaço, com posicionamento dos dançarinos, figurinos, maquiagem. Independente do estilo que está sendo apresentado, esta dança vai sofrer alterações de sua natureza espontânea original dando espaço à premeditação técnica, ao ensaio, ao desenvolvimento cênico.







Foi exatamente este o processo sofrido pelas danças populares egípcias no surgimento da dança do ventre, dança cênica que conhecemos hoje em dia, com raízes étnicas populares muito claras, mesmas raízes do American Tribal Style®, diga-se.

Fusão

Voltemos ao dicionário. Existem diversos sentidos para o vocábulo fusão, seja na química, física, estatística, política, linguística, sentido jurídico. Vamos nos ater ao sentido figurado apresentado pelo dicionário on line de português: “Junção proveniente da ligação ou combinação entre dois sujeitos, objetos, etc.” Também podemos entender como a união de dois elementos para formar uma terceira coisa.

Um dançarino que mistura no fazer de sua dança duas referências distintas estará fazendo uma fusão que pode se desdobrar em algo novo, surpreendendo a quem assiste, trazendo criatividade e um olhar diferenciado ao dançar.

Fusão na dança pode ser a mistura de quaisquer elementos de danças populares, cênicas, étnicas ou não. Você pode fusionar baladi com balé, ou afro com indiano, hip hop com hula hula, jazz com flamenco. Aquilo que fizer sentido para você, artista criador. Aquilo que te desafia a questionar o mundo, a fazer diferente, que te parece belo. Não existem proibições à criação cênica, embora existam algumas discussões contemporâneas a respeito da apropriação de determinados elementos étnicos para criação, seus limites serão aqueles impostos pela sua própria disposição corporal, mental e emocional. No meu entender, aquilo que faz sentido, que te move, deve ser explorado artisticamente, sem pudores.


Hip hop moderno contemporâneo

Fusão Étnica

Entendo por fusão étnica a utilização de um ou mais elementos de origem popular em uma criação cênica. Uma performance de fusão étnica pode ter um peso maior dos elementos estéticos de uma etnia específica, como música, figurino, movimentos. Porém uma fusão não pode pretender representar aquela etnia de forma fidedigna, ou não será uma fusão.
A que serve uma criação fusionada, a final?

Fusões servem para encontrar paralelos e interseções, apontar contrastes e diferenças entre os estilos fusionados. Existem muitos movimentos comuns a danças completamente diferentes, como por exemplo: Mamboty e frevo. Como estudante de danças populares egípcias e brincante do carnaval pernambucano, fiquei chocada ao descobrir a gama de movimentações semelhantes nestas duas danças de origens muito distintas. A minha tentação de “frevar” na semsemaya ou de fazer mamboty no frevo é bem grande! Pense na dificuldade de criar uma coreografia isenta de fusão. Poderia ser muito interessante uma fusão étnica com estes elementos, quem sabe, um marinheiro de sombrinha colorida. Uma brincadeira, um encontro de culturas, uma identificação de nossas semelhanças como seres humanos habitantes de um mesmo planeta redondo, onde as informações culturais giram no migrar dos povos e se renovam através dos tempos.


Bollywood – Fusão Étnica

Neste contexto das fusões étnicas, a própria dança do ventre como a conhecemos, já seria uma fusão entre elementos de danças populares regionais com elementos cênicos como o balé. O estilo tribal americano de dança do ventre (como foi originalmente nomeado) é seguramente uma grande fusão étnica, catalogada e formatada em um sistema de criação definido, com vocabulário de movimentos próprio e códigos para figurino e interpretação da música.

Fusão Étnica x Estilo Tribal

Embora o estilo tribal seja uma fusão étnica, ele não é aberto. Não é qualquer fusão entre os elementos de danças árabes, flamenco e danças indianas que vai ser considerada tribal. Como dito anteriormente, o estilo tribal americano é um sistema definido e fechado em seus códigos. Movimentos novos apenas são aceitos como vocabulário oficial de dança tribal, após anos de prática, testes e após cair no uso geral das praticantes de ATS® ao redor do mundo.
Fusões étnicas não se pretendem tribais, podem ter aspectos muito abrangentes e nenhuma preocupação em corresponder a este ou aquele código. Para exemplificar, podemos usar a figura de um guarda-chuva, onde o guarda chuva em si seriam as fusões étnicas e o ATS® uma de suas pontas.

Contemporaneidade

Desde o início do século 20 muitos coreógrafos se dedicaram a buscar novas maneiras de expressão corporal diferentes da rigidez do balé clássico. Esta busca deu origem ao balé contemporâneo, à dança moderna e posteriormente à dança contemporânea. A dança contemporânea pode ser considerada um desdobramento da dança moderna, bastante embasada em pensamentos desenvolvidos no pós segunda guerra por filósofos e pesquisadores do corpo, do espaço e de pesquisas somáticas, buscando uma maior integração do bailarino com a consciência de si, com o ato de questionar o mundo à sua volta e seu papel no mundo, buscando uma maior integração com o espaço que ocupa, com seu público e com a expressão de suas ideias.

Não existe um vocabulário de movimentos específico para dança contemporânea, em tese cada coreógrafo tem a liberdade de pesquisar e criar seu próprio vocabulário de movimentos de acordo com o que lhe interessa criar. Muitos coreógrafos embasam sua técnica em balé ou em elementos de dança moderna, outros buscam uma naturalidade de gestos cotidianos, ou uma busca por uma teatralização, derrubando as barreiras entre a linguagem teatral e a da dança. A música não precisa ser interpretada como na maioria das modalidades, funcionando mais como uma trilha sonora do que como ferramenta fundamental da linguagem. A dança contemporânea pode acontecer com ruídos, sons de natureza ou mesmo longos pedaços em silêncio. Pode propor interações com outras formas de arte e tecnologia, transcendendo o palco e o espaço cênico.


Coreografia de Pina Bausch (uma das maiores referências da dança contemporânea) para “Sagração da Primavera” de Stravinski

Existem sim clichês de movimentos da dança contemporânea, aquelas técnicas fruto de exercícios que passam de dançarino a dançarino e acabam por permear a criação de diversos artistas. Isto é quase inevitável de acontecer e propõe um catálogo de movimentações para iniciação na modalidade.
No meu entendimento, o que melhor pode definir o legado da dança contemporânea para todas as outras modalidades de dança é um olhar diferenciado sobre a criação. Questionamentos e quebras das regras anteriormente estabelecidas, o uso da técnica como um meio de expressão e não como um fim de virtuosismo somente. Este olhar pode ser estendido a qualquer modalidade e já é uma realidade nos processos de composição coreográfica de diversos artistas ao redor do mundo, incluindo os coreógrafos de danças étnicas populares e, como não poderia deixar de ser, influenciando a dança do ventre, a fusão, o tribal fusion e todo o seu universo ao redor, criando a fusão contemporânea.

Muitas artistas renomadas no meio se especializam em buscar a contemporaneidade nas suas obras, uma nova maneira de usar a técnica renovando o espaço cênico e as ideias aplicadas à dança. Várias já ministram workshops dedicados ao tema como é o caso das incríveis Mira Betz e April Rose, que através de suas criações trouxeram novo fôlego ao mundo da Fusion Belly dance e romperam de vez algumas fronteiras criativas.


Mira Betz e sua coreografia épica no The Massive Spetacular em 2011

Fusão Étnica Contemporânea

Romper as fronteiras da criação é algo que me interessa bastante enquanto coreógrafa. A liberdade de auto expressão sem regras de representatividade, sem regras estéticas onde eu possa me servir de todas as minhas ferramentas corporais e musicais para expressar uma ideia, um pensamento, uma emoção. A liberdade de investigar diferenças e interseções entre diversas linguagens populares para uma criação expressiva e cênica. Esta liberdade seria o olhar contemporâneo sobre a criação.
Transitar por conceitos de dança tribal é uma opção, para lá de não obrigatória. Acredito que falando de minhas criações pessoais, é bem possível que haja variedade de movimentações de origem tribal, afinal, minha corporeidade está embebida nesta formação técnica, mas é apenas mais uma ferramenta de movimentação e não é uma preocupação ou um foco criativo.

A Fusão Étnica Contemporânea se forma a partir da possibilidade de fusão de diversas referências culturais em um mesmo espaço corpóreo, revelando a possibilidade de manifestação da diversidade cultural em uma só linguagem.

O termo em si é uma sugestão para que as dançarinas e criadoras de fusões olhem para sua própria dança com curiosidade, um desejo de investigar onde estão os limites a serem transpostos em suas criações.
Nadja El Balady – Nostalgic


Shaman Tribal - Carcará